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Reflexões sobre Serviço Público



Não é segredo para ninguém que vivemos no tempo da comunicação instantânea.

Nunca antes na História foi possível disseminar informação – seja escrita, áudio, vídeo, ou uma mistura de todas – em tempo real por quase todo o mundo.

Em minha opinião, isso ajuda-nos a viver num meio distorcido, onde o detalhe que é ampliado toma a vez do todo. Damos atenção ao mais ínfimo pormenor de assuntos pouco relevantes, somos especialistas em pequenos nadas que nos moldam a tomada de decisão, descurando o rumo geral da sociedade.

Será, em parte, esta a lógica por detrás do vociferar estridente de cada vez mais subdivididas categorias minoritárias. Amplificam as suas questões, pretendendo elevá-las a emergências gerais, comuns a todos. Quando caímos em nós vemos uma sociedade focada em detalhes como se fossem, de facto, as grandes questões do nosso tempo. Isto acontece também com o forçar de questões controversas, normalmente por um limitado número de intelectuais que se têm por iluminados e com bom acesso aos meios de comunicação. Mais recentemente, estas tendências encontram câmaras de ressonância nas redes sociais, fertilizadas por tantos que buscam protagonismo e escape para as frustrações em que vivem enredados por este tempo.

Este exército da minúcia míope tem contribuído para tornar cada vez mais elevado o preço da existência pública – seja em que área de actividade esta se enquadre.

Essa mesma existência pública tem sido arrastada para as proximidades de uma existência comparável às das celebridades, no sentido mais “cor-de-rosa” do termo. 

Aqui surge outro problema, pois a vida pública de alguém que se dedique à política – em que a sua acção profissional é amplamente escrutinada – ainda se cruza com a devassa da vida privada (auto-imposta ou não) resultante da celebrização de muitos políticos. 

Um exemplo recente destes efeitos nefastos é o do tratamento dado a eventos da vida privada de Pedro Passos Coelho em algumas plataformas.

No fundo a política sucumbiu à vaidade da celebridade para tentar comunicar com mais eficácia, mas com isso vendeu a sua capacidade negocial e a credibilidade, arrastando todos por igual.

Em terceiro lugar, e não menos preponderante para o actual estado de coisas, encontramos o individualismo desenfreado do nosso tempo. Creio que o fim da Guerra Fria deixou a civilização ocidental entregue a si mesma e aos seus pequenos egoísmos. Muito impulsionados pelos grandes saltos tecnológicos dos últimos 30 anos, temos vindo a assistir a uma cada vez maior personalização da experiência individual da realidade. Por outro lado, tem-se tornado mais fácil a congregação em torno de interesses e causas comuns a pessoas espalhadas pelo mundo, centrando-as no seu umbigo e desligando-as da restante realidade, num ciclo autoalimentado de difícil interrupção.

O fim da Guerra Fria, afastando um perigo iminente que dava corpo a um colectivismo coercivo, destrutivo de qualquer autonomia ou aspiração pessoal de melhoria das condições de vida, ajudou a esvaziar a noção de espírito de serviço no ocidente.

Em paralelo com este facto, encontramos a colocação do poderio económico como referencial superior, mesmo único, da conduta humana. Curiosamente, encontramos hoje espaço para coisas que Churchill defendia e personificava no início da sua carreira política. Este via a sua condição aristocrática (e considerava que assim devia ser com os seus pares) como uma moeda com dois lados. Tudo a que tinha acesso por nascimento implicava que teria que se preparar para levar uma vida de serviço ao país e aos outros, com a obrigação de melhorar as condições de vida de todos. Tinha em si uma clara noção de serviço público, que o ajudava a ser melhor estadista.

Hoje, esta visão não colhe não só pela recusa do privilégio por nascimento, mas também pelo tempo do individualismo egoísta que vivemos. 

Desaparecendo a tensão referida, causada pelo choque entre um colectivismo coercivo e um colectivismo espontâneo e altruísta, este último perdeu foco. Sobrou uma forma de individualismo alimentada pelo consumismo capitalista desenfreado, sem referências morais que o guiassem para lá da comezinha auto-satisfação.

É frequentemente tido por facto que quem é bom e competente profissionalmente terá deixado a política para se dedicar a uma carreira mais interessante e recompensadora a vários níveis. Vi alguém escrever numa rede social que, à direita, a competência debanda para não ter que aturar uma comunicação que tantas vezes maltrata, deturpa e roça a difamação em busca de um título que venda jornais e cliques. E como hoje a informação é amplificada graças aos factos anteriormente referidos, é compreensível o receio e afastamento, pelo alto e desproporcional preço imposto à vida pública.

E isso não cria as condições para a dedicação ao serviço público nem a apreciação social pelo mesmo.

“A noção de serviço público desapareceu, e o sacrifício que hoje se pede em termos de abdicar da privacidade é incomportável”

 

 

 

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