É notório que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) tem acusado
algum cansaço na fase mais recente do seu mandato. Ninguém consegue estar imune
a gaffes quando fala tanto e tantas vezes de improviso. Porém, neste
último 1º de Dezembro, MRS voltou a ter uma intervenção
relevante e de superior qualidade onde prestou homenagem aos heróis ciganos que
tombaram por Portugal e contribuíram para a Restauração da nossa independência.
Nesta mensagem, MRS começa por evocar os 40 conjurados que conhecemos e
todos aqueles que “aquém e além-mar” lutaram na recuperação da independência de
Portugal. Esta não foi apenas uma vitória dos notáveis conjurados e do Rei D.
João IV que os liderou, tratou-se também dum feito dos outros “muitos [que] se
implicaram” e do “Povo Português”. Entre os muitos que souberam ser os
bastantes, MRS destaca o cavaleiro fidalgo Jerónimo da Costa e 250 outros
ciganos que combateram por Portugal. Lembramos o esforço hercúleo dos heróis da
Restauração: após 60 anos de domínio filipino, a recuperação da independência
foi iniciada a 1 de Dezembro de 1640 e defendida em vários campos de batalha ao
longo de 27 anos, culminando com a paz do Tratado de Lisboa em 1668. Neste
tratado, Espanha reconhece a Restauração da Independência de Portugal e devolve
todos os prisioneiros e conquistas (Olivença incluída), com duas excepções: a
aldeia raiana de Ermesende e a cidade de Ceuta, esta última que decidiu
manter-se na coroa espanhola apesar de conservar até hoje no seu brasão as
armas do nosso país.
Os ciganos portugueses fizeram parte de todo este esforço, também a
eles devemos a nossa independência. Em 1646, o procurador da coroa Thomé
Pinheiro da Veiga escreve a D. João IV atestando que Jerónimo da Costa “serviu
a V. Majestade três anos contínuos nas fronteiras do Alentejo, com suas armas,
e cavalo, tudo à sua custa, sem levar soldo algum, franca, e fidalgamente: e
relata-se mais em nome de V. Majestade, o valor e esforço [(…)d]as suas
proezas, até que na Batalha do Campo de Montijo foi morto com muitas feridas,
pelejando sempre mui esforçadamente. (…) Serviu valerosamente no Campo, até
deixar a vida, aonde tantos infamemente fugiram, à vista dos que esforçadamente
morreram, ou pelejaram”. Três anos depois, em 1649, D. João IV reconhece em
alvará os “mais de duzentos e cinquenta [ciganos] em meu serviço desde o tempo
de minha feliz aclamação alistados com zelo e valor, com que já foram muitos
apremeados”, no entanto confirma no mesmo documento a sua ordem de prisão e
degredo de ciganos para Angola e Cabo Verde e, a quem alugasse casas a ciganos
ou os recolhesse, o Rei destina degredo para Castro Marim ou África conforme a
gravidade e, no caso de serem fidalgos, a sua expulsão da Corte.
Jerónimo da Costa não é exemplo único e não é apenas isto que devemos
aos ciganos. Infelizmente, também as duras leis contra os ciganos não são
inéditas na História. Lembremos a Porajmos ou Devoração, o nome dado ao
genocídio cigano às mãos dos nazis, com várias centenas de milhares de ciganos
fuzilados e gaseados em campos de concentração. Estima-se que morreram 25% a
50% do total de ciganos europeus durante os 10 anos de poder de Hitler. Não
posso deixar de ter profunda simpatia por um povo que, como os rohingyas, ou
como os judeus até à formação do Estado de Israel, são em cada lugar tratados
como estrangeiros. Mas não são, e lembro alguns nomes para mostrar que Portugal
e o Mundo devem muito daquilo que têm de melhor à comunidade cigana.
Os ciganos e a sua admirável cultura contribuíram e contribuem muito
para a nossa vida. Quem não admira a bela cigana Esmeralda, a única pessoa
capaz de tratar Quasimodo com dignidade no romance de Victor Hugo? Quem, ao ler
García Lorca, não quer acompanhar Antõnito El Camborio que caminha a pé com uma
vara de marmeleiro, em direcção a Sevilha, para ver os toiros? Quem não se
impressiona com a valentia do Beato Ceferino Giménez Malla “El Pelé”,
catequista e patrono dos ciganos que na Guerra Civil Espanhola protegeu um
padre das agressões e morreu fuzilado gritando “Viva Cristo Rey!”? Quem não tem
curiosidade sobre a peregrinação dos ciganos a Saintes-Maries-de-la-Mer, na
Camarga, com a linda procissão das santas acompanhadas por milhares de pessoas
a pé, a cavalo e em barcos? E já que falámos de toiros, Hemingway menciona os
ciganos e descreve-os como ninguém, muito direitos e olhando de frente os
toiros na arena. E entre nós, lida hoje com muita alegria o talentoso cavaleiro
cartaxense Parreirita Cigano. Essa ligação especial dos ciganos com os cavalos
vê-se também no campo, nas estradas do Ribatejo e do Alentejo, até em Peaky
Blinders, nos circos, nas feiras… e o que seriam os circos e as feiras sem os
ciganos? Podemos pensar em flamenco e ouvir o purismo de Camarón de la Isla ou
a rouquidão melódica de Diego el Cigala, hipnotizados pelas sevilhanas de
vestidos às bolas rodopiando e rodando os folhos enquanto desenham poesias
aéreas com os seus braços. Deixando essa arte para quem sabe, quem de nós nunca
dançou ao som dos Gipsy Kings e das Azúcar Moreno? Quem nunca vibrou com o desempenho
no grande ecrã de Bob Hoskins, Sir Michael Caine ou Sir Charlie Chaplin, todos
eles de origem cigana?
Contemplemos por um momento Charlie Chaplin. Dele dizia Pablo Neruda
“Carlos Chaplin, el último padre de la ternura en el mundo”. Não se sabe ao
certo onde Charlie Chaplin nasceu, mas poderá ter sido num acampamento cigano
em Black Patch, Birmingham. Quem viu Peaky Blinders sabe do que se trata. Ser
cigano não era um assunto, mas Chaplin deu pistas e escreveu “preferia ser
cigano a actor de cinema”. Talvez aí esteja a chave para entendermos Charlot, a
sua figura cinematográfica. Em “Charles Chaplin, o Self-Made-Myth”,
José-Augusto França diz que “para Charlot, o tipo de vida ideal, aquela que,
por assim dizer, admite como oficial a sua vagabundagem, é a do cigano –
ausência de obrigações cívicas, alheamento ao progresso mecânico, apartamento
de qualquer geografia política, uma vida meio selvagem, vivida na surpresa
aventurosa do dia a dia, da curva das estradas que vão ter a um sítio que é
sempre outro, e onde a sua manha pode desencantar a subsistência necessária. Se
Charlot fosse alguma coisa (é-o frequentemente nos seus filmes – dentista,
bombeiro, criado de café, polícia, operário, varredor, caixeiro, desempregado),
a essa coisa preferiria ser cigano e a partida em vagabundagem, é a conclusão
de muitos filmes em que se apresentara como trabalhador; é sempre a sua
conclusão lógica…”. Num outro texto, José-Augusto França vai mais longe e chama
Charlot de “(ousarei dizê-lo aqui? – talvez brincando, talvez não…) uma espécie
de Zé Povinho universal!”
Por falar em Zé Povinho, é escusado lembrar que somos os campeões
europeus de futebol em 2016 com Ricardo Quaresma, e que não o seríamos sem ele.
Mas eu não quero ser resultadista, o que seria da magia do futebol sem as
trivelas daquele que ficou conhecido como o Harry Potter do futebol? Tenho de
referir também a música portuguesa dos Ciganos d’Ouro, de Diego el Gavi e
Nininho Vaz Maia, cada um no seu registo, com imensa qualidade e sucesso. Mas
se falamos de cultura portuguesa, o fado é incontornável. E que seria do fado
sem a mítica Severa? Nascida em 1820 na Madragoa, esta cigana viveu na
Mouraria, na Rua do Capelão em tantos fados cantada. Ali, Amália Rodrigues
descerrou uma placa que diz “Nesta casa viveu Maria Severa Onofriana /
Considerada na época a expressão sublime do Fado / Faleceu em 30-11-1846 com 26
anos de idade / Lisboa 3-6-1989”. Júlio Dantas escreveu “A Severa” em 1901, o
primeiro filme sonoro português tem o mesmo nome e foi realizado por Leitão de
Barros 30 anos depois, muitos fados e homenagens a referem e, mais
recentemente, centenas de milhares de pessoas puderam ver o musical “Severa” de
Filipe La Féria. Outro apontamento que nos faz encontrar a forte influência
cigana no fado é o belíssimo Fado da Sina cantado por Hermínia Silva no filme
“Um Homem do Ribatejo” (1946) e que foi um dos maiores sucessos do seu
repertório. Assim, a cultura cigana não são só é portuguesa, como a arte destes
ciganos nos ajuda a sermos melhores pessoas e melhores portugueses.
Não devia fazer o que acabo de fazer, que é citar tão por alto tantos
nomes maiores, ciganos que marcaram indelevelmente a nossa cultura, em tão
poucas linhas. Mas, para efeitos de publicação deste artigo que já vai longo, é
necessário tentar meter o Rossio na Betesga. Penso que não é preciso citar mais
nomes para provar o meu ponto. São tantos os que conheço que ficam de fora...
mas tantos mais são aqueles a quem muito devemos e não sabemos que são ciganos!
Por contacto directo, acho também importante referir o trabalho de
campo da Pastoral dos Ciganos, instituição católica preocupada com a promoção e
integração social do povo cigano, com total respeito pelos seus valores
culturais. É assim que deve ser. Pude ver como agem com amor e eficácia em
bairros sociais onde, sem qualquer tipo de dúvida posso afirmar que a raiz de
todos os problemas é o mau urbanismo. Vi-o com os meus olhos em dois bairros na
periferia de Lisboa, num dos casos era uma pequena e antiga aldeia tradicional
que de repente recebeu um grande bairro de prédios sociais para realojar
pessoas que viviam onde se fez a Expo 98. As pessoas foram realojadas por
zonas: os ciganos na parte Norte, os africanos num lado e os brancos noutro
lado. Já viram a insensibilidade social do decisor político? Os males sociais
desse bairro estavam bem repartidos por todas as comunidades. Um dia, vi uma
mãe cigana sair do autocarro com o filho bebé às costas. Os meninos de outra
comunidade, crianças de 7-8 anos que jogavam futebol na rua, pararam a bola e
pegaram em pedras. Alguma das pedras acertou no grande manto preto da cigana,
mas ela seguiu caminho e nem olhou. Ali, naquele momento, a realidade foi tão
crua quanto n’O Senhor das Moscas de William Golding. O problema ali não eram
os ciganos. Não eram as outras comunidades. Naquele caso, como em tantos
outros, a raiz de todos os problemas é tão somente o mau urbanismo.
Voltando à mensagem do 1º de Dezembro, qual é o alcance das palavras do
Presidente? Muito imediatamente, são palavras presidenciais com enorme
ressonância mediática durante dias e permanência nos algoritmos dos motores de
busca sempre que alguém no nosso país procurar por “ciganos”. E sobretudo, a
maior importância destas palavras de MRS está indicada no fim do seu texto:
“Este dever de memória é de elementar Justiça e rompe com tanto esquecimento e
discriminação de que os ciganos têm, infelizmente, sido alvo no nosso País”. Já
o discurso de
MRS no 25 de Abril de 2021 tinha sido extraordinário por compreender e integrar
as várias facções em confronto na nossa História recente, reconhecendo bons
argumentos a uns e a outros. Voltou a ser importantíssima esta intervenção de
MRS no 1º de Dezembro de 2022, no seguimento de ter sido o primeiro Presidente a
estar presente nas comemorações do Dia Internacional do Povo Cigano, na Maia,
em 2018. Espero que MRS consiga limitar os seus momentos de improviso e possa oferecer-nos
mais intervenções como estas.
Por estas razões, falou por mim o Presidente quando declarou que
“Portugal lembra-os, presta-lhes homenagem e exprime a sua gratidão.” Faço
também coro das palavras do Papa Francisco falando aos ciganos durante a sua
viagem apostólica à Roménia em 2019: “Em nome da Igreja, peço perdão, ao Senhor
e a vocês, por todas as vezes que, ao longo da história os discriminamos,
maltratamos ou os consideramos de forma errada, com o olhar de Caim em vez do
de Abel, e não fomos capazes de os reconhecer, apreciar e defender na sua
peculiaridade”.
Jerónimo da Costa, herói e mártir da Restauração da Independência de
Portugal, merece ter o seu nome gravado em bonitas ruas e praças deste Alentejo
que defendeu. Por tudo isto e mais ainda: Obrigado, Ciganos!
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