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GREAT AGAIN: NOTA INCOMPLETA SOBRE A «GRANDEZA» DOS PAÍSES

 


«Make America great again»: este o lema da campanha original do agora presidente cessante dos Estados Unidos da América, o equivalente possível ao «yes, we can» do seu predecessor. À época, muitos acusaram a equipa do então candidato de tentar capitalizar a nostalgia por uma América que nunca existira de facto. A mim interessa-me mais explorar o significado de «great», vulgarmente traduzido por «grande»: mesmo que essa América passada seja uma retrotopia e, portanto, uma ficção, que caracteres são esses que supostamente possui que a tornam objecto do qualificativo «grande»? Em suma: que faz de um país um «grande» país?

No que leio e ouço, parece assumir-se, não raro, que um grande país é um país poderoso do ponto de vista militar. Outras vezes a grandeza de um país surge indexada à sua pujança económica. Creio que ambas as posições estão erradas. Penso que o adjectivo «grande», quando qualifica «país», possui o mesmo valor semântico que tem, por exemplo, na frase «este é um grande livro». Quem comenta «este é um grande livro» não está a emitir um juízo acerca do número de páginas de um qualquer volume, está sim a louvar a qualidade da obra, a dizer, no fundo, que o livro elogiado cumpre superlativamente com tudo o que se espera da literatura.

A questão, pois, que temos de nos colocar é: o que esperamos nós de um país? A que fim está ordenada a comunidade política? Só sabendo o que queremos dela podemos avaliar a sua qualidade. Tenho para comigo que a comunidade política bem ordenada estará apontada ao florescimento humano daqueles que nela participam, sem prejudicar aqueles que não a integram. Não vou defender aqui esta tese, que, para ser filosoficamente sólida, carece de algumas qualificações importantes; contento-me em imaginar que o leitor tenderá a concordar comigo. Haveria ainda que esclarecer o que se entende por «florescimento humano», mas, uma vez mais, terei de confiar que o leitor partilha pelo menos em traços grossos a minha ideia do que é um ser humano realizado.

Escusado será dizer que, uma vez aceite esta perspectiva, o poderio militar de um país só interessará à aferição da grandeza deste último na medida em que concorra, de algum modo, para o desenvolvimento humano dos cidadãos desse mesmo país — e não é imediato em que medida isso acontece. O mesmo se diga da riqueza de um país. Na verdade, qualquer critério que se invoque para apelidar um país de «grande» só será levado em conta se for possível provar que ele efectivamente contribui para o fim da comunidade política bem ordenada, a saber, a vida boa (se quiserem: a vida plena) dos seus membros. Isto significa, por exemplo, que um país não é grande só porque produz grandes desportistas, artistas ou intelectuais; num certo sentido, isso é tão relevante para a determinação da grandeza real do país como o facto de ele produzir, suponha-se, as melhores bananas do mundo. 

Dito ainda de outra forma: um país não é grande só porque produz, por exemplo, grandes escritores: a grandeza do escritor não transita, como numa sinédoque, para a comunidade em que ele está política e socialmente enraizado. Já se os membros da comunidade recebem uma educação que os dota de hábitos de leitura e, por isso, podem usufruir da grande arte produzida por um seu compatriota e, por via desta, são expostos ao belo, provocados intelectualmente e vêem a sua faculdade imaginativa magnificada (o que, como bem advoga M. Nussbaum, é essencial para que sejamos capazes de nos pôr no lugar do outro, capacidade sem a qual a vida em comum soçobra) (outras virtudes da boa literatura poderiam ser elencadas) — então, aí, o facto de um país produzir grandes escritores pesará, em parte, no juízo acerca da sua grandeza, se aceitarmos – tese potencialmente controversa mas não implausível – que não é igual para o membro de uma comunidade política «consumir» arte produzida por outros que integrem a mesma comunidade e arte feita por seres humanos exteriores a esta.

            Um país será grande, portanto, se a comunidade política que ocupa o território estiver ordenada de forma tal, que todos os que a integram vêem a sua dignidade respeitada, com tudo o que isso implica. Um país atravessado por profundas injustiças económicas, sociais e culturais dificilmente poderá ser tido por um grande país. Menos ainda um país em que a maioria da população vegete na miséria ou, por exemplo, seja analfabeta. 

Adoptar esta perspectiva tem consequências de monta. Significa, por exemplo, que só cinicamente se poderá considerar o período da expansão como o período áureo de Portugal, um tempo mítico em que teríamos sido «grandes». Não só aí não foi respeitada a importante cláusula acima enunciada, a saber, que o florescimento dos membros de uma comunidade não pode ser conseguido à custa do prejuízo daqueles que integram outras comunidades, como mesmo os membros dessa comunidade política que se dava então pelo nome de Reino de Portugal e dos Algarves não viviam, na sua vasta maioria, em condições favoráveis ao seu florescimento humano. Pouco importa que o mesmo se possa dizer de todos os países que havia então no mundo; a única conclusão que se deixa tirar desse facto é que as comunidades políticas existentes então falhavam claramente no que acima estabelecemos ser o seu fim: promover a pessoa humana toda, capacitá-la maximamente para desenvolver a sua potência.

Note-se que daqui seria precipitado concluir que as pessoas eram então, na sua vasta maioria, infelizes. Talvez o fossem, mas não sabemos, e é algo arrogante da nossa parte afirmá-lo. Muito embora o leitor culto já tenha detectado a influência de Aristóteles sobre as minhas posições, a verdade é que, contra o Estagirita, não identifico vida boa e felicidade (uma vez mais, como Fermat, não tenho aqui espaço para justificar esta afirmação). Também não se conclua do que se disse acima que as pessoas naquela época não participavam (uso o verbo aqui quase em sentido platónico) da vida boa, i.e. que elas não tinham qualquer experiência desta. O que se diz é, sim, que a vida que levaram não foi uma vida em que tudo o que decorria da sua dignidade tenha sido devidamente atendido pelos poderes públicos, aí onde eles podiam agir.



Créditos finais do filme Dogville (2003), de Lars von Trier. Imagens retiradas do livro American pictures (1977), do fotógrafo Jacob Holdt. Música de fundo: «Young americans» (1975), de David Bowie.


João Diogo R. P. G. Loureiro



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